Você tem dois olhos para quê?

Se queremos escrever Novas Narrativas e buscar soluções que contemplem a vida, precisamos ter um olho que enxergue e honre os saberes ancestrais.

Por Michele Oliveira

De Cali, na Colömbia, sede da recém concluída COP 16, Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade, chegaram notícias de que lideranças mundiais foram conclamadas a enxergar com dois olhos. Isso mesmo. O termo Two-Eyed Seeing (Visão com dois olhos, tradução livre) é de 2004, criado por Albert Marshall, ancião Mi’kmaq¹ - grupo indígena da costa Atlântica do Canadá. E convida para o seguinte:

Etuaptmumk - Two Eyed Seen é reaprender a ver com um olho a força dos conhecimentos indígenas e suas formas de saber e, com o outro olho, a força dos conhecimentos ocidentais e suas formas de saber… e aprender a usar os dois olhos juntos, para o benefício de todos. (Institute for Integrative Science and Health)

Vinte anos se passaram desde a apresentação do termo e ele segue atual e, infelizmente, desconhecido. Embora mais do que nunca necessário. Ou alguém ainda acha que seremos capazes de desenhar relações de respeito e cuidado com a natureza, de reverter as emergências climáticas relacionadas diretamente à destruição da biodiversidade para garantir nossos confortos e consumo, sem honrarmos o conhecimento, a experiência de pele de quem é natureza (todas e todos somos, mas são pessoas indígenas que vivem essa potência no dia a dia)

Enxergar com dois olhos é o que organizações indígenas de nove países, incluindo o Brasil, pediram e materializaram na COP 16. Criaram o G9, coalizão de organizações indígenas dedicadas a proteger a floresta nos países amazônicos². E escreveram um manifesto que reivindica a participação na presidência da COP30, que ocorre em Belém em 2025. O texto simboliza que, mais do que serem vistos, os povos indígenas querem ter escuta. Pra que mesmo temos dois ouvidos?

E o que é urgente vermos e escutarmos é isso: apesar de representarem apenas 5% da população global, são os povos indígenas os grandes guardiões da biodiversidade. Estima-se que seus territórios ocupem 28% da superfície terrestre mundial e, junto com comunidades ribeirinhas, protejam e preservem 80% da biodiversidade do planeta³.

A visão com dois olhos conduz a novas formas de tomada de decisão. É o que está em teste na Colúmbia Britânica, no Canadá, onde o governo local está reescrevendo suas leis para compartilhar decisões com mais de 200 nações indígenas sobre uma base territorial maior que a França e a Alemanha juntas. Decisões que envolvem a gestão das terras de povos originários e afetam arrendamentos e licenças para silvicultura, mineração e construção⁴.

O projeto está no começo mas, se conseguir respeitar e honrar as escolhas dos povos originários, será um marco global na condução de projetos. Imagine se a transição energética, altamente dependente de minerais presentes em áreas de comunidades indígenas e ribeirinhas, compartilhasse o poder de decisão sobre mineração com quem habita o território? Um absurdo? Para os padrões atuais que consideram apenas as suposições de uma história única, com certeza. Mas, como bem escreve Chimamanda Ngozi Adichie⁵, é urgente falarmos e enxergarmos os perigos dessa história única - branca, patriarcal, masculina e binária -, que molda investimentos, comportamentos, consumo e modos de viver que soam tentadores mas são desrespeitosos com a vida.

Nas conversas da COP 16, outras histórias até hoje desqualificadas evocam novos olhares. Pela primeira vez, o papel das pessoas afrodescendentes é reconhecido na ação de preservar a natureza, junto a povos indígenas e comunidades locais. Foi criado um órgão específico para subsidiar as COPs futuras nos temas relativos a estas populações⁶.

A pergunta que devemos nos colocar é se, de verdade, queremos tomar decisões que nos conduzam a modelos econômicos de mais respeito com a natureza e, consequentemente, atuar em soluções para as múltiplas emergências climáticas a partir da conservação, preservação e regeneração? Precisamos arrancar o tampão que carregamos há séculos cobrindo um dos nossos olhos e incorporar às nossas narrativas e, consequentemente, cultura e ações, o que nunca antes tínhamos enxergado. Histórias que valorizam outras formas de viver e confluem olhares e saberes para construir novos futuros.


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Michele é co-fundadora e sócia da Agência Fecunda.É especialista em Novas Narrativas, com estudos sobre visões de mundo pelo Gaia Education. Estudou e voluntariou no Schumacher College (UK) e é formada em Permacultura. Tem experiência em projetos ESG voltados para as temáticas da intergeracionalidade e geração de renda a partir da floresta em pé, no Cerrado. Atuou como jornalista por mais 20 anos em grandes emissoras de TV e também em comunicação empresarial..

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