Você tem dois olhos para quê?
De Cali, na Colömbia, sede da recém concluída COP 16, Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade, chegaram notícias de que lideranças mundiais foram conclamadas a enxergar com dois olhos. Isso mesmo. O termo Two-Eyed Seeing (Visão com dois olhos, tradução livre) é de 2004, criado por Albert Marshall, ancião Mi’kmaq¹ - grupo indígena da costa Atlântica do Canadá. E convida para o seguinte:
❝Etuaptmumk - Two Eyed Seen é reaprender a ver com um olho a força dos conhecimentos indígenas e suas formas de saber e, com o outro olho, a força dos conhecimentos ocidentais e suas formas de saber… e aprender a usar os dois olhos juntos, para o benefício de todos.❞ (Institute for Integrative Science and Health)
Vinte anos se passaram desde a apresentação do termo e ele segue atual e, infelizmente, desconhecido. Embora mais do que nunca necessário. Ou alguém ainda acha que seremos capazes de desenhar relações de respeito e cuidado com a natureza, de reverter as emergências climáticas relacionadas diretamente à destruição da biodiversidade para garantir nossos confortos e consumo, sem honrarmos o conhecimento, a experiência de pele de quem é natureza (todas e todos somos, mas são pessoas indígenas que vivem essa potência no dia a dia)
Enxergar com dois olhos é o que organizações indígenas de nove países, incluindo o Brasil, pediram e materializaram na COP 16. Criaram o G9, coalizão de organizações indígenas dedicadas a proteger a floresta nos países amazônicos². E escreveram um manifesto que reivindica a participação na presidência da COP30, que ocorre em Belém em 2025. O texto simboliza que, mais do que serem vistos, os povos indígenas querem ter escuta. Pra que mesmo temos dois ouvidos?
E o que é urgente vermos e escutarmos é isso: apesar de representarem apenas 5% da população global, são os povos indígenas os grandes guardiões da biodiversidade. Estima-se que seus territórios ocupem 28% da superfície terrestre mundial e, junto com comunidades ribeirinhas, protejam e preservem 80% da biodiversidade do planeta³.
A visão com dois olhos conduz a novas formas de tomada de decisão. É o que está em teste na Colúmbia Britânica, no Canadá, onde o governo local está reescrevendo suas leis para compartilhar decisões com mais de 200 nações indígenas sobre uma base territorial maior que a França e a Alemanha juntas. Decisões que envolvem a gestão das terras de povos originários e afetam arrendamentos e licenças para silvicultura, mineração e construção⁴.
O projeto está no começo mas, se conseguir respeitar e honrar as escolhas dos povos originários, será um marco global na condução de projetos. Imagine se a transição energética, altamente dependente de minerais presentes em áreas de comunidades indígenas e ribeirinhas, compartilhasse o poder de decisão sobre mineração com quem habita o território? Um absurdo? Para os padrões atuais que consideram apenas as suposições de uma história única, com certeza. Mas, como bem escreve Chimamanda Ngozi Adichie⁵, é urgente falarmos e enxergarmos os perigos dessa história única - branca, patriarcal, masculina e binária -, que molda investimentos, comportamentos, consumo e modos de viver que soam tentadores mas são desrespeitosos com a vida.
Nas conversas da COP 16, outras histórias até hoje desqualificadas evocam novos olhares. Pela primeira vez, o papel das pessoas afrodescendentes é reconhecido na ação de preservar a natureza, junto a povos indígenas e comunidades locais. Foi criado um órgão específico para subsidiar as COPs futuras nos temas relativos a estas populações⁶.
A pergunta que devemos nos colocar é se, de verdade, queremos tomar decisões que nos conduzam a modelos econômicos de mais respeito com a natureza e, consequentemente, atuar em soluções para as múltiplas emergências climáticas a partir da conservação, preservação e regeneração? Precisamos arrancar o tampão que carregamos há séculos cobrindo um dos nossos olhos e incorporar às nossas narrativas e, consequentemente, cultura e ações, o que nunca antes tínhamos enxergado. Histórias que valorizam outras formas de viver e confluem olhares e saberes para construir novos futuros.
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Michele é co-fundadora e sócia da Agência Fecunda.É especialista em Novas Narrativas, com estudos sobre visões de mundo pelo Gaia Education. Estudou e voluntariou no Schumacher College (UK) e é formada em Permacultura. Tem experiência em projetos ESG voltados para as temáticas da intergeracionalidade e geração de renda a partir da floresta em pé, no Cerrado. Atuou como jornalista por mais 20 anos em grandes emissoras de TV e também em comunicação empresarial..
Referências citadas:
G9 indígena e a Reivindicação para COP30 em Belém (Um Só Planeta / Funai, /G1 / Valor Econômico);
Importância dos povos originários na preservação da biodiversidade, National Geographic / ONU;
Compartilhamento de decisões entre Columbia Britânica e Povos Indígenas (The Guardian);
Reconhecimento dos povos afrodescendentes na conservação da natureza (Terra);